Era um dia nublado. Tinha 9 anos, eu acho.
As nuvens cinzentas, umas mais outras menos,
anunciavam uma iminente chuva.
Pouco me importava com isso, pra desespero da minha mãe, que me pedia pra entrar em casa.
Pedia isso por dois motivos:
Um, para não ficar resfriado. Dois, pra não melar a roupa.
A terra da rua encharcada da água da chuva maculava toda minha roupa naqueles momentos.
Pouco me importava.
Principalmente naquele dia em que estava prestes a ganhar de todos os meninos. Perto de ganhar a bola prateada do Júlio. Um negrinho de beiços largos e gordos que morava no final da minha rua.
A disputada e invejada bola de gude prateada de Julio era herança de seu falecido pai. Seu Carpo. Ele era eletricista náutico e havia trazido o presente para o filho, de uma viagem a Portugal. Costumávamos jogar assim:
Fazia-se um círculo de tamanho médio no chão e dentro dele se colocava um número pré determinado de bolas de gude. O número de bolas colocadas no círculo tinha de ser igual para cada jogador. A uma certa distância do círculo tentavamos, um por vez, fazer com que as bolas saíssem do círculo. As que saíssem ficava sob a posse de quem a tirou de lá. Haviam outras pequenas regras que não vem ao caso. O mais importante era que, jogo vai-jogo vem, o burro do Júlio deixou que sua bola prateada ficasse dentro do círculo. Praticamente sozinha. E era justamente a minha vez de tentar tirá-la de lá. Minhas mãos tremiam de angústia e só de pensar que aquela bola de gude prateada, dentro de alguns segundos, podia estar entre tantas outras bolas dentro do bolso do meu calção já rasgado de tanto uso. Mirei. Mirei durante tanto tempo que todos os meninos gritaram desesperados par ir logo: "Vai logo seu marica! Se tu errar é a nossa vez!". Me chigavam de marica só pra me desconcentrar. Mas não deu certo.
Como se não fosse possível, vi a bola de gude prateada rolar feito criança na grama, pra fora do círculo.
Fiquei em estado de choque. A ponto de nem sequer correr atrás da bola pra pegá-la com medo de que os outros meninos a fizessem por mim. Agora, mirei para o rosto de Julio. Os buracos da sua narina, que já eram grandes, inchavam e desinchavam por causa da sua respiração descompassada de tanta raiva de mim, por conquistar sua herança, e de medo, por não saber o que dizer pra sua mãe caso ela perguntasse pela bola prateada que havia recebido do pai que já não poderia lhe presentear com outra. Uma relíquia perdida num jogo de azar. Quem dissse que crianças não sabem jogar?
Como se quisesse nos dispersar e evitar ver 2 crianças se agrarrando no chão dando socos e ponta-pés, Deus deixou cair suas lágrimas em forma de chuva pesada justamente na hora em que Júlio correu pra cima de mim e só assim saí do meu estado paralítico para apanhar a bola que havia acabado de ganhar e atender o chamado da minha mãe que, naquele momento, foi minha salvação pra não me chamarem de covarde. Corri pra casa imediatamente,
me desculpando bem alto: "Tô indo, mãããe!"
Da janela da sala de casa, de joelhos no sofá, pude ver Júlio sentado no chão de terra, todo melado. Os meninos tinha ido embora, todos. Não consegui saber se o Julio chorava, pois as lágrimas divinas podiam estar misturadas com as suas. Ou não. Mas pelo rosto caído pude ver o quanto seu peito devia estar doendo por perder sua bola de maneira tão banal. O cabelo crespo parecia ipermeável á água da chuva. Saí da janela. Meti a mão no bolso do calção e catei a bola prateada. Era minha agora. Mas alguma coisa me impedia de sorrir por aquele feito. Não fiquei feliz. Pelo contrário. Senti pela primeira vez, vergonha de mim mesmo. Um sentimento que se tornaria comum durante minha vida adulta. Decidi fazer algo improvável pra minha capacidade de percepção. Desobedeci minha mãe, me levantei do sofá, abri a porta e fui caminhando até o Julio. Perto dele, não chamei seu nome. Apenas disse: "Ei...". Julio olhou pra cima e me viu em pé, próximo a ele. Como se aquilo não significasse absolutamente nada, voltou a abaixar sua cabeça.
"Toma. Ela é sua." - Disse eu, abrindo minhas mãos e deixando visível e palpável a bola de gude prateada.
Julio não disse nada. Se levantou, pegou a bola de volta da minha mão, enxugou com o braço negro as lágrimas que ainda permaneciam disfarçadas em seu rosto e foi embora pra casa. Virou as costas e saiu andando. Ainda pude ver de longe ele colocando a bola prateada no bolso e protegendo com a mão todas elas, com receio que de alguma maneira a pudesse perder de novo.
Ouvi mais uma vez minha mãe já nervosa chamar por mim:
"O que é que você tá fazendo na rua, seu infeliz? Já pra dentro!". Me assustei e quando dei por mim, estava todo molhado da chuva. A minha mãe mal podia saber que eu havia feito algo da qual ficaria orgulhosa:
Abri mão da minha alegria, que me é de direito, pra fazer voltar a alegria de uma outra pessoa.
Sacrifício. Essa é a palavra.
domingo, 22 de agosto de 2010
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Quem sou eu
- Thiago.Araujo
- Sou aquilo que os outros dizem quem sou. Afinal, acreditam mais neles que em mim.
1 comentários:
Lindo...
'Sacrifício: Essa é a Palavra'.
O que temos de fazer todos os dias, nos abnegar para que pelo menos uma lágrima sorria novamente.
Bjs.
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